terça-feira, novembro 02, 2010

DE ONDE VEM O RESÍDUO



 Cracolândia
"Resíduos" do crack no centro
São Paulo, 2010
Foto: Inês Correa


No feriado, entre ir e vir, votar e trabalhar minha cabeça estava atenta ao fato de que precisava explicar porque havia utilizado o termo resíduo no post abaixo, Algum lugar. Sabia que não havia dado o devido crédito a quem o escreveu. A pressa, a correria fizeram com que eu escrevesse o termo que havia lido e guardado na memória sem dizer de onde vinha. O registro da dança como pensamento que dança, artigo escrito pela professora Christine Greiner, da PUC de São Paulo que li na revista D'Art nº 9, foi a fonte do resíduo que ficou em mim. Por um lado fincou como uma lança. Nunca havia pensado em registro como algo assim tão... sobra. Naquela leitura a fotografia tornou-se um resto, aquém, carne de segunda. O dia seguinte. A ressaca. A overdose. Ao mesmo tempo ressurgiu a responsabilidade do pensar em como trazer em imagem, de como fazer com que o resíduo se tornasse algo além de "ruínas" ou "ruídos" de uma outra obra, de um olhar engessado, de uma imagem que passou e não trouxe.

A Letícia Sekito, da Companhia Flutuante, deixou um comentário no mesmo post pedindo a autorização de uso do termo. Disse a ela que escreveria, já havia dito a mim, sobre o resíduo que fermentou além do próprio post. Aproveito para lembrá-la que assim como ela precisa pedir a autorização do uso do termo, preciso eu. No artigo Christine Greiner escreve sobre a a dança como arte efêmera, sobre a dificuldade que se tem em registrá-la e que "a proposta de arquivar dança significa documentar os resíduos das obras: fotografias, vídeos, notações, programas, entrevistas com os criadores e assim por diante".. Naturalmente isso não acontece somente com a dança. Acontece com outras artes. Com a vida. As guerras cujos registros são os resíduos de si mesmas, imagino. Com tudo que se vê e que se tenta organizar em memória. E com a própria memória de cada um de nós provavelmente.

O artigo não é só isso. Isso é um "resíduo" que recolho dele, reconheço. Mas foi este resíduo que gerou em mim o desprezo seguido pela preocupação do fazer em imagem o melhor resto. Como o almoço  que faço das sobras tiradas da geladeira, ainda assim gostoso. Como o lixo que reciclado retorna em algo aproveitável, reutilizável. Segundo Christine Greiner, "nunca será possível arquivar qualquer fenômeno de modo definitivo, é sempre aos pedaços e em degradação. A escolha da informação que fica deve ser coerente com o pensamento da obra.". Talvez o resíduo fotográfico "passe a ser " levando-se em consideração tais fatos ao se pretender registrar algo.

Revista D'Art
Fonte: http://www.centrocultural.sp.gov.br/revista_dart/index.htm

Outros resíduos vindos do post, um outro que não o de cima, deixou o João Andreazzi, da Cia. Corpos Nômades. Copiado e colado abaixo um Carlos Drummond de Andrade residual. Obrigada João.



RESÍDUOS
Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco...

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros...

Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco...

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