quarta-feira, junho 01, 2011

NÃO AUTORIZADA

Confesso que li a introdução do livro três vezes. É muito. Mas sempre alguma coisa me tirava a atenção e começava tudo de novo. Além do mais a foto da introdução… Olhava pra ela e sabia que precisava entender mas a impressão do livro não ajudava. Não conseguia percebê-la. Ela olhava pra mim. Eu, voltava a olhar pra ela. 

Quando consegui me concentrar, sair da minha ansiedade imatura, na terceira leitura, ela estava me olhando e a forma como a vi mudou. Estava enxergando algo e não sabia o que ainda. De qualquer maneira fiquei incontrolável. Não conseguia mais desviar o olhar. Nada mais me acessava além dela. O que antes tirava atenção do meu foco já não sabia mais onde estava. Se a percepção "é seletiva e ativa", na direção dela meu corpo estava agora. Independente de permissão ou consentimento.



Michael Snow, Authorization
Authorization
 

Foto de Michael Snow, 1969
(reprodução)


Se você quiser ver melhor a reprodução entre no site no site The Amica Library. Lá da para reduzir e ampliar quantas vezes quiser. Ou vá até a Galeria Nacional em Ottawa, Canadá, onde a obra está exposta. Ah, já conhecia? Ok, no problem. 

O que foi que me fez sentir, ver, pensar, perceber, amar. Porque me envolvi com a fotografia de Michael Snow? 

No livro, O Ato Fotográfico, Philippe Dubois dedica a introdução a uma foto de Michael Snow intitulada Authorization, a foto reproduzida acima. Ele nos faz refletir sobre o fato de que uma foto é só mais uma e outra foto é o todo do nada, tanto em tão pouco ou nada em muito. As que não são tudo podem ser ou dizer algo a alguém mas não a outro. Outras dizem a tantos. Ufa! Ela agora, a fotografia de Snow, me deixa sem fôlego!

Dubois diz que descrever a obra de Snow, de 1969, não é nada fácil para ele “justamente porque não é uma imagem, uma foto, mas, antes, um dispositivo”. Então o que estou tentando fazer aqui no meio desse ardor, dessa reflexão profunda? Segundo Dubois, a foto “é um acionamento da própria fotografia”. Imagino que com isso ele queira dizer que a foto acompanha a ação do fotografar em si. Ela mostra “suas próprias condições de surgimento e recepção”

A parte de como a foto foi feita é descrita no livro. Não vou escrever aqui de novo a operação completa. Vou falar mais sobre a imagem final e o título da obra – Authorization. Do fazer, só vou lembrar que se trata de um auto-retrato em que o fotógrafo se fotografa diante de um espelho e cola a imagem revelada no espelho com fita adesiva. São cinco fotos. Por isso vemos os quadradinhos com as diversas “não mesmas” imagens. O primeiro quadrado, à esquerda, tem o primeiro clique colado. O segundo quadrado, à direita, tem a foto já com o primeiro quadrado e assim por diante. O foco não está no plano do espelho mas na imagem refletida o que faz com que aconteça uma perda de definição progressiva. 

Segundo Dubois, Michael Snow não multiplica sua imagem mas no lugar dela, no final o que se vê é poeira: “dissolução total do sujeito pelo e no ato fotográfico. Imagem-ato”. E prossegue o raciocínio dizendo que Authorization “é bem mais que uma simples foto: é o acionamento da própria fotografia”.

A foto ao ser o ato de fato não é simples ato é ato pensado. Tanto o fotógrafo pode ter elaborado a ponto de ter certeza do que seria o resultado final como pode ter sido surpreendido em algum momento e percebido que de alguma maneira suas ideias estavam fluindo para aquele termo. Caso totalmente pensado ou não, assim são algumas pesquisas e buscas. Quando um cientista inicia uma observação ou investigação muitas vezes o resultado é totalmente sabido. Outras vezes, surpresas acontecem. Nada altera a grandiosidade da proposição e da solução ou da direção que o fato desencadeia.

Quando Michael Snow colocou o corpo de sua câmera no tripé, posicionou o espelho, escolheu a lente e definiu foco, abertura, asa e velocidade iniciou um processo de busca por si mesmo do outro lado do visor, da lente, do espelho. Revelada a primeira foto ele introduz a primeira foto no que vai ser a próxima, volta a posição inicial e dispara o ele da primeira versão na segunda posição. Snow pode ver a si mesmo no instante anterior e imaginar o próximo. Ele altera, transgride, remove, dispensa o tempo cronológico. Ele apresenta na mesma imagem mais de um tempo. Ele questiona o segundo, o minuto e a hora. Antes de tentar entender o que está sendo feito ou dito ou escrito seria interessante saber em que contexto acontece. Seria também interessante o contexto de cada qual envolvido. De quem aqui escreve, dos sujeitos que estão sendo lidos, do artista que fez a imagem, sempre no ato. Mas não é possível agora. Portanto fica para mim a pergunta: qual o motivo que fez com que uma imagem e sua descrição ficassem palpitando em mim? O que estava acontecendo comigo no momento?

Primeiro gostaria de observar que só li a introdução do livro até agora (Texto escrito em 25.02.2010). Ao mesmo tempo estava lendo o livro O que é contemporâneo? e outros ensaios, de Giorgio Agamben, professor de Filosofia Teorética na Faculdade de Arte e Design do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza, Itália. Quando me vi diante da obra de Snow a sensação foi boa porque naquele momento percebi que estava diante de uma obra que apresentava, em imagem, o que havia lido e relido no livro de Aganbem: 

“Se contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”.

Estava vendo o teórico e a concepção em si de contemporâneo em imagem. A imagem que Agamben apresenta em palavras nos leva a pensar em situações atuais, em nós mesmos, nos outros, em trabalhos que estão por aí. Muitas dúvidas ficam e outras são criadas já que o entendimento em cada um vem de um tipo de leitura. A obra de Michael Snow é a contemporaneidade em si mesma e em imagem. Michael Snow nasceu em Toronto e é considerado um dos mais significantes artistas da arte e cinema contemporâneo dos últimos cinqüenta anos. Em Authorization, ele contempla e ultrapassa os limites do tempo. Nos faz ver Snow ontem, hoje e amanhã, em cinzas, desintegrado. Snow faz com que cada um reflita a idéia do ser e do nada ser. Da existência. Da vida e de quanto ela é nada perene. Nos faz ver sua imagem e sua não imagem, o desfoque provoca uma sensação de eternidade e o uso de uma fita crepe provoca a simplicidade na complexidade. Authorization, ao mesmo tempo, o nome da obra, não a imagem revelada, instiga, estimula e induz a pensar no fazer fotográfico. Mais uma vez, no ato, na imagem-ato. O autor e sua obra, sem mistério, sem sair de casa, do estúdio, da redação. Authorization não depende de autorização, permissão nem licença para ser concebida e apresenta o tempo e o humano o poder e a revelia.



Ato Fotografico, O (2004)
DUBOIS, Philippe
Ed. PAPIRUS
Livraria Cultura: www.livrariacultura.com.br  

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