sábado, fevereiro 19, 2011

CHARLOTTE DEPOIS DA CHUVA



Depois da chuva
São Paulo, 2011
Fotos: Inês Correa


A chuva veio lavar um dia e depois outro. Intensa. Quando ela cessou meu corpo foi levado. Alguma coisa me "conduzia". Precisava abrir a janela daquele lugar.  Quando abri o vento leve acariciou meu rosto, meu cabelo curto, meus olhos. Respirei fundo, bem fundo mesmo e pude sentir o cheiro delicioso das folhas  "mascadas" pelo tempo, pela água, pelo vento no ar úmido do início da noite. O cheiro dos galhos que caíram das árvores da cidade lavada pelo tempo.

A chuva de granizo fechou a Estação da Luz. Provocou congestionamentos e alagamentos. Deixou a cidade de São Paulo em estado de atenção. Mudou o roteiro do meu dia, desfez compromissos, me levou a rever os lugares por onde passaria.

Dentro do carro, janela aberta, continuava sentindo outro cheiro na cidade. O mesmo que havia sentido na outra janela. Olhava para os outros carros. As pessoas embriagadas da rotina talvez não percebessem. Alguns buzinavam. O mesmo stress de todos os dias acompanhava este. Meu carro atravessava as ruas de jardins coberto de folhas e flores de Resedá, árvore que gera uma flor miúda parecida com um milho de pipoca estourado. Branca por fora,  miolo amarelinho. Ele estava forrado delas. Lindo como nunca esteve antes. Pude ver outros carros passarem por mim cobertos de flores e folhas também, de outras cores e formas.

Minha filha abriu a janela do carro. Perguntei se sentia outro cheiro. Ela respirou  fundo, fundo mesmo. Disse que sim sem falar, somente com os dentes em um sorriso largo. Continuou cantando alegre.

A mesma chuva que levou com ela folhas, flores e galhos veio buscar Charlotte. Provavelmente ela resistiu o quanto pode. Quando cheguei em casa a noite já tinha se instalado. Pude ver o que sobrou de sua teia. Os galhos que se sustentavam nela. Não encontrei-a. Seu corpinho leve e delicado deve ter sido carregado para longe. Se sobreviveu vai começar uma vida em outro lugar. 

A imagem traduz a devastação anterior causada pelo tempo. Ao mesmo tempo, para mim, a ideia de doçura, de vazio, silêncio, movimento e saudade

"A Charlotte está viva, mãe", ouço meu filho dizer. Olho e posso vê-lo agora de manhã sentado, quase deitado, na minha cama, ainda de pijama, sem a parte de cima, sorrindo. "É mesmo? Onde?", perguntei. "No meu sonho, mãe. Sonhei com aranhas de todos os tamanhos, tarântulas pretas e peludas. Muitas. Muitas mesmo. A Charlotte também estava no meu sonho!".




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